domingo

Mutilação

 Mutilação


Estrias rubras

Em tom ardente

Dor lascinante

De cor pungente

Finca-se na pele

Como aço em brasa

Queima a derme

E o sangue envasa

As lamúrias estridentes

Espúrias e adstringentes

Fazem-se se ouvir

Por deuses e gentes

Que ousam não intervir

E seus óleos quentes

Seus olhos descrentes

A ignorância que abrasa.


Diego Leocadio

sábado

Fluxo

Fluxo


Às vias vazias da mente vil

Pungindo pelas fracas veias vermelhas

Esfacela, finge, fagulha

Vomita os ventos da fúria

Escapa, sã, pelos dedos da lamúria

Verme volátil, fugaz e sutil

Em voluptuosas fagulhas e centelhas

Arrasa a paisagem do que já se viu

E sob a solidão eterna se esteia.


Diego Leocadio

sexta-feira

Pluriforme

Uma lágrima cristalina feita de grafite caiu sobre o papel.
Foi traçando um círculo em ondulações paralelas
Que se emaranhavam em suas encruzilhadas
A pedra se esculpia numa bela forma disforme
Que estrondava um silencioso murmúrio
Tal como um cântico de trovadores sem épicos
A grandiosidade dessa gota simplista,
Que já não é gota, mas mar.
É capaz de fazer o mais rude se entristecer
E o mais cruel gentil
Mas já não consegue fazer do gentil um severo
Pois já lhe escorreu pelos dedos, esfarelando-se pelo chão.
E a gota que fora,
Já não é mais a gota que é,
Nem a gota que será.
Mas molha o papel como um grafite duro
E lhe faz um furo
E o papel já não é mais papel,
Mas fruto do que aconteceu
Com o futuro.

D. Leocádio

quarta-feira

José, o homem invisível

José, o homem invisível

    Olá, meu nome é José. Eu sou invisível. A luz transpassa minha pele, de forma que sou sempre translúcido.
    Ando por aí e ninguém consegue me ver. Vez ou outra percebem a minha presença de relance, mas não pela visão, mas por algum tipo estranho de consciência sensorial alternativa.
    Você pode pensar: "deve ser muito bom ser invisível". Eu digo: "é e não é". Quando se pode ser visto, eu suponho que você deve ter momentos em que realmente quereria estar invisível, mas a sensação de ser observado cria boas experiências, também. Pois o mesmo se aplica a nós, invisíveis, mas a com devida inversão que a transparência acarreta: estamos acostumados com a invisibilidade, porém queríamos muito ser visíveis de vez em quando.
    Os outros não conseguem saber o que sinto, o que quero, o que necessito. Não conseguem saber se estou doente ou sadio, alegre ou deprimido, sozinho ou acompanhado. Um fato sobre a companhia é que quando cercado por gente visível, me sinto inferior, pois têm algo que eu não tenho, mas quando com meus colegas invisíveis, é uma sensação diferente: podemos fazer o que quisermos que ninguém verá o que estamos fazendo. Ficamos conversando, falando sobre a vida, sobre as dificuldades de ser quem somos e afogando nossas mágoas em drogas, para ver se aquecemos o espírito.
    Ser invisível é um fardo muito grande para nossas existências, porém temos várias vantagens nessa condição. Podemos, por exemplo, viver sem precisar se preocupar com as aparências, sem se preocupar com o que pensarão de nós, sem pressa pois nunca se está atrasado. Podemos fazer chacota de tudo e todos e ninguém vai perceber, podemos afanar coisa ou outra que as pessoas vão se enfurecer mas não nos acharão. Somos como duendes perdidos na cidade grande.
    Mas a maior dificuldade está mesmo em se encontrar. No fundo, no fundo, eu existo. Meus pensamentos existem, todos emaranhados num conjunto de línhas tão transparentes como o ar. Posso não contar com as vantagens de poder ter a luz refletida sobre mim, mas posso refletir sobre mim mesmo. Já vi várias pessoas não-transparentes que refletem luz, mas não refletem vida. Mas mesmo assim adoraria estar visível um dia.
    Se eu pudesse ter cores, ter uma sombra ao meu lado, seria um sonho realizado, mesmo que se fosse por alguns momentos. Poderia aproveitar pequenos detalhes como me observar, desenhar minhas feições, demonstrar sentimentos, olhar nos olhos de alguém e ser retribuído. Quando esse momento acabasse, teria certeza que seria o melhor da minha vida.
    Aceito, porém, que é um sonho perdido, pois mesmo se você quisesse trocar comigo nesse momento, não conseguiria. E mesmo que quisesse, eu não deixaria, pois sei que quem deseja ser invisível precisa se encontrar, mas precisam entender que o que importa é o equilíbrio entre lucidez e transparência que buscamos em nós mesmos.

segunda-feira

As aventuras de Kauê, o Castor - Kauê e a escova

As aventuras de Kauê, o Castor

Kauê e a escova

    Kauê é um castor bem dentuço. Ele usa seus dentes para ajudar na hora de construir sua barragem.
    Certo dia, Kauê começou a sentir muita dor em sua dentição, tendo que recorrer ao seu amigo e conselheiro Daniel, a Coruja. Após examinar os dentes de seu amigo, Daniel disse:
     Kauê, com que frequência você escova os seus dentes?
     Escovar os dentes? Como se faz isso?  respondeu o castor.
     Inacreditável! Você nunca escovou os seus dentes?  espantou-se a coruja.
    Daniel fez sinal para que Kauê esperasse onde estava, saiu voando e voltou minutos depois, com uma escova de dentes bem grande para seu amigo utilizar.
     Toma, aqui está  disse a coruja  Você abre a boca e esfrega assim  e fazia movimentos circulares com a escova sobre o seu bico aberto.
     Assim? – Kauê tomou a escova das mãos de Daniel, e começou a escovar seus lábios.
     Não, seu besta!  irritou-se Daniel  Assim, olha!
     Mas eu fiz exatamente como você está fazendo!  irritou-se o castor.
     Ahh... uhh... desculpe-me, eu não tenho dentes para te mostrar da forma correta  encabulou-se Daniel - Mas você deve fazer movimentos circulares sobre os seus dentes.
    Após isso, os amigos se despediram e Kauê voltou à sua barragem.
    Uma vez aconchegado, usou a água do rio para molhar a sua escova e começar a limpeza dos dentões. Desde então, Kauê se tornou o animal com os dentes mais bonitos e fortes da floresta.
    Por conseguir roer melhor, começou a fazer verdadeiras obras de arquitetura em madeira em sua barragem, das quais é muito orgulhoso.
    Todos os dias Kauê recebe muitas visitas dos outros animais e até mesmo de humanos em seu território. Ele mostra suas criações com muita pomposidade, com brilho nos olhos. O que ele não sabe é que o que seus visitantes querem mesmo ver é o excêntrico castor que escova os dentes.

    Diego Leocádio